Os Quatro Textos do Apocalipse Artístico

Encontrei, já há algum tempo, num livro dedicado ao ensino de inglês, quatro textos dedicados ao tema da utilidade da arte. Concordo que se questione a utilidade da arte. Na minha opinião tudo deve ser minuciosamente questionado. Inclusive o próprio minucioso questionamento deverá ser questionado. O que não concordo é com as conclusões a que os quatro autores do texto (enfim, sendo o livro educativo, os textos devem partilhar o autor, que se fez passar por quatro pessoas diferentes, de modo a expor diferentes pontos de vista, a fim de colocar questões chatas (mas pertinentes no contexto da educação) de interpretação) chegam, seja por estarem simplesmente erradas, ou por irem um bocado a leste do que realmente significa a arte. Está certo que o objectivo dos textos não era propriamente expor a ideia, mas sim avaliar a capacidade interpretativa dos alunos. No entanto, sendo textos que serão lidos, a sua ideia principal irá influenciar o leitor, seja esse o objectivo do texto ou não, logo convém ser questionado. Além de que me dá pretexto para falar sobre algumas coisas, expondo algumas ideias minhas. Porque vá, eu gosto de escrever sobre coisas que me interessam.

Parte da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, uma das mais famosas obras de sempre. Olhando para ela,digam-me, qual é a sua utilidade?
Vamos enumerar conclusões. No primeiro texto conclui-se que as artes são importantes porque ligam a sociedade ao seu passado, e uma população às suas ideias e ideais, além de servir para cada um exprimir a sua individualidade. Este até não está mau, mas ponho-lhe a questão: Para que me servirá, a mim, por exemplo, In the Hall of the Mountain King, de Edvard Grieg? Não tenho interesse em estudar o passado da Escandinávia, não há propriamente muitas ideias a serem transmitidas, e não sou eu que estou a exprimir a minha individualidade. Logo, utilidade não existe, posso ignorar a obra a minha vida toda e não fará diferença. Além disso, a minha opinião é que as obras são mais influenciadas pelo artista, do que pela sociedade. Por exemplo, "Noite Estrelada", de Van Gogh, diz-nos mais sobre Van Gogh, do que sobre a sociedade em que foi realizada. Se não concordarem comigo, estejam à vontade para expor o vosso ponto de vista na zona de comentários.

Noite Estrelada, de Van Gogh

Segundo texto: Este é o melhor de todos. Faz duas afirmações, e consegue estar tão errado em ambas. Uma, é que a utilidade da arte é o seu valor económico. A melhor maneira de avaliar o quanto a arte contribui para a sociedade é avaliar o seu impacto na economia. Se calhar estou sozinho, mas acho isto absurdo. Este senhor afirma que a principal utilidade da Mona Lisa é fazer dinheiro ao Louvre. E as pessoas que vão aos museus, que fazem essas da vida? Com certeza que a única razão porque vão é entenderem a necessidade da arte contribuir para a economia, portanto investem o seu dinheiro no museu para que a economia avance. Tanto faz estar lá exposto O Grito, de Edvard Munch (outro artista com o mesmo nome, curioso, nunca tinha reparado), ou o desenho que eu fiz na primária da minha família, o que interessa é o dinheiro que rende.

O Grito, de Edvard Munch

Diz também o senhor do segundo texto que a ideia de que a arte serve como ferramenta civilizadora do ser humano está errada, visto haver muita gente "intolerante e egoísta" que aprecia poesia ou "boa música", seja lá o que "boa música" for, coisa tão subjectiva. Este senhor é daquela gente que, confrontada por uma metáfora, sabe identificá-la e aplaudir a sua beleza, mas se lhe perguntarem qual o seu significado, fica a coçar a cabeça. Em primeiro lugar, a arte só é ferramenta civilizadora se for feita para tal. Se eu fizer uma música a incitar o racismo, é arte, cuja mensagem é parva, mas arte à mesma. Até arte com maus ideais merece ser estudada, em primeiro, porque até aos maus ideais devemos questionar se não serão bons, e em segundo, porque saber o que faz uma coisa ser errada é tão ou mais importante como saber o que faz uma coisa ser certa (para o caso de não ser claro, deixem-me reiterar: não estou a apoiar o racismo, nem intolerância, nem nenhuma patetice parecida). Depois, pessoas que ao observar arte, mantêm-se impermeáveis ao que a obra em questão pretende transmitir são pessoas superficiais, que veem apenas o lado estético da arte. Se a arte fosse só a sua componente estética, muito mal estávamos nós. Quanto a essas pessoas, não será a arte que as civilizará, não por falta de poder para, mas sim por recusa do observador. Não é culpa da chave de fendas não conseguir aparafusar, se o parafuso estiver dobrado. A arte só serve para quem está disposto a ajudar-se a si próprio, a questionar e a meditar. Aos outros, deuses e homens os acudam, que sozinhos não vão longe.

Galloping Horse, de Xu Beihong


Vamos então ao terceiro texto: Este é outro que considera o valor económico um "substancial argumento a favor das artes". Considera, no entanto, e muito à semelhança do primeiro texto, que a arte serve para passar valores e significados para o futuro, o dá à sociedade um sentido de identidade, e contribui para o seu respeito de si mesma. Está certo, mas deixa uma questão muito semelhante à que eu coloquei ao primeiro texto. De que me serve a arte chinesa? Não é a minha sociedade. Não. Também este texto fica aquém da real explicação da verdadeira importância da arte.

Capa do Primeiro Livro da Saga Harry Potter, de J.K.Rowling, uma das obras com a maior comunidade de fãs

Quarto e último texto: Este sim, já me parece mais correto. É aqui apresentada a hipótese de que o grande contributo da arte é encorajar-nos a interagir com pessoas com diferentes vidas e crenças, levando-nos a celebrar as nossas semelhanças, em vez de nos dividirmos pelas nossas diferenças. Mesmo assim, sinto que esta utilidade é incompleta. Está correta, provada pela quantidade de grupos na internet dedicados a certas obras de arte, mas falta explicar a utilidade da arte em toda a sua extensão. Afinal, duvido seriamente que a janela do Convento de Cristo tenha realmente sido uma grande força de humanização, agregação e tolerância.

Janela do Convento de Cristo
Divina Comédia, de Dante Alighieri, por exemplo. O "Inferno" descrito por Dante é a base na qual foi construída a visão actual do submundo, especialmente, no oeste cristão. É uma das obras que mais influenciaram sociedades e mentes, havendo inúmeras outras obras baseadas no "Inferno". É uma obra que pôs muitos a questionar os seus valores religiosos, deu força à igreja, graças ao temor ao inferno suscitado em quem o lê. Podemos dizer que a sua utilidade foi ter juntado pessoas, fazendo-as focar-se nas suas semelhanças, ao invés das suas diferenças? Realmente há quem se tenha juntado em igrejas, para fugir ao inferno, mas será essa a principal utilidade que a obra teve nestes sete séculos de existência? Ou o seu valor é o seu valor monetário? É que sendo esse o caso, não vale nada, estando em domínio público. Será o seu valor ligar a sociedade ao seu passado? Sendo uma obra que influenciou tempos e sociedades para além daqueles em que foi escrita, duvido seriamente.

Mapa do Inferno, de Botticelli, representando o Inferno de Dante
O que é, então, a utilidade da arte? Esta é uma pergunta difícil, não por não haver resposta, mas por haver demasiadas. Se pesquisarem "contribution of art" no Google, aparecem-vos logo inúmeros e extensos textos, cada um diferente do outro. Parece que a utilidade da arte depende, não só da obra, autor e contexto em que foi realizada, mas também do público.

We Become What We Behold, um pequeno jogo flash sobre o efeito da media no público
Portanto, deixo aqui o meu ponto de vista: O valor da arte não se encontra cientificamente. Arte é uma forma de transmitir sentimentos e sensações, é uma forma de traduzir a essência do nosso ser numa linguagem que por outros possa ser compreendida, a mais eficiente forma de mostrar aos outros como vemos o mundo. É também um veículo conservador de ideias e ideais, que através dela perduram para além do idealizador, e chegam a novas pessoas. Através da arte comunicamos o que por simples palavras não pode ser comunicado. E nessa comunicação encontramo-nos uns nos outros. É uma ferramenta unificadora e de tolerância, que ajuda a humanizar o ser humano. É uma maneira de aprendermos uns com os outros sobre aquilo que a ciência não consegue explicar.
Na arte cumprimos o nosso impulso natural de expressar a criatividade, individualidade e talento. Serve de ferramenta de exaltação, censura (no sentido de critica, não de lápis azul) e escárnio. Muito importante, é a utilidade da arte para influenciar a criação de arte. É forte persuasor, o que pode ser mau, em certos e determinados casos, mas francamente, tudo o que tenha o poder de influenciar alguém o é, e não é por isso que andamos todos a cortar as línguas uns aos outros. Arte é também entretenimento e decoração, tem o seu valor estético, colorindo o que seria, de outro modo uma existência a preto e branco. A um nível mais pessoal, é uma maneira de sabermos que as outras pessoas têm uma mente tão ou mais complicada que a nossa. A grande maioria de nós já sentiu que é a única pessoa no mundo que pensa mais que as outras. Vê os outros todos a fazerem as rotineiras coisas mundanas da vida, não parecendo importar-se com mais nada. E depois aparece a arte, registo de outros de tudo o que na sua mente foge ao mundano. E deixamos de estar tão sozinhos.

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