What Remains of Edith Finch
Há jogos que parece que mudam uma pessoa. Não nos sentimos
bem os mesmos depois de os acabar. Foi assim que um canal do youtube me vendeu What
Remains of Edith Finch, um walking simulador que nos leva a explorar a casa da
família Finch. Aviso desde já que recomendo vivamente que joguem o jogo antes
de ler o que segue. Vale mesmo a pena jogar sem fazer ideia do que se vai ver. Eu
não vou andar a revelar a história toda, e vou fazer um esforço para revelar o
mínimo possível, mas há algumas coisas que tenho mesmo de dizer para poder
falar do que quero.
Após a morte de sua mãe, Edith Finch, última Finch viva,
regressa à velha casa de família, para descobrir os segredos e histórias que
esta ocultava. Esta família é, mais do que qualquer outra coisa, azarada. No
sentido em que os seus membros têm tendência para o falecimento. Já a casa, é definitivamente
abandonada. No entanto, talvez pelo uso inteligente de luz e cores, nunca me
senti como se estivesse num jogo de terror. Comunico aqui aos meus colegas
galináceos, que não há jumpscares. Tirando um tão fraquinho que nem o coração
me bateu mais depressa. Mas estava eu a dizer, a casa tem um aspeto muito de
abandonada, mas também algo de familiar. Cada membro da família tem o seu
quarto, que permaneceu inalterado desde o momento da sua morte, e que é, no
fundo, um espelho da personalidade do seu dono. Existem também várias passagens
secretas, fruto da imaginação de um dos avôs de Edith. É também notável que os
quartos mais recentes da casa, pertencentes à geração mais jovem, foram
simplesmente anexados por cima da casa, numa estrutura que parece tão insegura
quanto feia.
Portanto, a estrutura da narrativa é muito simples. Vamos
explorando a casa como Edith, enquanto esta narra factos sobre a família, comenta
algum objeto ou acontecimento, em pequenas frases soltas. Pontilhando esta
exploração existem episódios em que Edith, e através dela, nós, revive os
momentos finais de cada membro da família. Esta narração é feita através de uma
curta sequência de gameplay, em que controlamos o futuro falecido, com essa
pessoa, ou alguém que lhe é próximo, narrando. Esta narração não é mais do que a
leitura de uma carta, folha de diário, etc. escrita pela pessoa que morreu, ou
por alguém que lhe era próximo, na altura da morte. A gameplay nestas alturas é
bastante inteligente, e narra tanto ou mais que o narrador. Direi também que a
história que nos é mostrada não é necessariamente 100% fidedigna, sendo enfeitada
pela imaginação de quem a narra. Ou talvez sejam relatos verídicos, e este
mundo seja um em que elementos sobrenaturais existem. No fundo, não interessa.
Porque o importante em What Remains of Edith Finch não é como é que cada pessoa
morreu. É a sua história, é a história que deixou para trás, é a memória que fica na mente dos outros. A realidade dos acontecimentos
que levaram à morte da pessoa não reflete a alma da pessoa, mas a história,
alterada quer pela própria, quer por outros, revela sim o que foi essa pessoa. É
por isso que a história de Barbara Finch, criança atriz famosa por filmes de
terror, caída na insignificância ao crescer, não nos chega através de uma carta
de alguém que lhe era próximo, nem numa sua página de diário, mas sim numa
banda desenhada de terror que contava a história do seu homicídio, como sendo a
ocasião em que finalmente conseguira recriar o grito de terror com que conquistara cinemas
em criança.
Talvez seja por isso que a casa Finch é como é, com os novos
quartos construídos no telhado. Porque cada pessoa constrói a sua vida, a sua
história, sobre a das que vieram antes. Ou talvez a arquitetura seja apenas um
detalhe visual interessante sem qualquer significado metafórico e eu esteja
apenas a sofrer as consequências de doze anos a ter a disciplina de português.
Uma das últimas personagens que visitamos é alguém que lida com problemas mentais, nomeadamente depressão e abuso de drogas. E a forma como jogo representa, através de gameplay, como a depressão vai progressivamente aumentado de algo "periférico", a algo que encobre totalmente a vida, é de uma genialidade indescritível. É a minha parte preferida do jogo. A personagem é mais do que a sua doença e sua dependência, e muito do que ela é ressonou comigo a um nível fundamental, levando-me até a considerar porque caminhos esta vida me iria levar. Para outras pessoas, outros elementos vão-lhes dizer mais, outros menos, mas haverá para todos algo que remoer nos próximos dias. Este jogo é uma experiência que mexe fortemente com a emoção, escondendo camada atrás de camada de sentimento em cada elemento da história que conta.
A morte em What Remains of Edith Finch não é vista como o
fim de tudo. É pintada poeticamente, como a concretização de tudo o que o falecido
era. As próprias histórias individuais são bastante emotivas, algumas mais,
outras menos. Algumas mostram personagens com as quais nos identificamos,
outras personagens causam emoção pelo seu efeito nas que as rodeiam. Outras
ainda pela narração de quem as perdeu. É de facto um jogo focado na morte. E no
entanto, não é sombrio, não é depressivo. É a visão do fim de uma história como
o ponto de começo de outra, construída com base nas que vieram antes, sem no
entanto ser nenhuma delas, nem a combinação de qualquer número delas, mas sim,
a sua própria história, a sua própria identidade, o seu próprio quarto na casa
Finch.
Posso estar errado? Posso. Não andei a pesquisar sobre a intenção dos criadores. Se calhar não estou a interpretar exactamente como seria suposto interpretar. Sei que há quem tenha interpretado como uma representação de como toda a gente à nossa volta está lidar com os seus próprios demónios, sei que há quem tenha interpretado como a importância da família, mesmo que sendo apenas através da história e memória que deixaram, outros viram representada a fragilidade da vida, apagada num breve suspiro que tão depressa veio como foi. Portanto, posso estar errado. E o que é que interessa? O objetivo deste blog, deste texto, nunca foi, pelos menos para mim, analisar jogos e oferecer uma análise livre de bias deles. Se alguma vez pareceu que assim fosse, foi por falha das minhas capacidades de partilhar a minha experiência sem o fazer através de algo semelhante a análise do jogo. Eu estou aqui para partilhar a experiência que foi jogar o jogo, ou ler o livro, ou ver o filme, ou estar vivo naquele dia em que fiz tal coisa ou coisa nenhuma. E a minha experiência foi o que senti, e o que senti foi o que interpretei. E é isso que aqui partilho.
A equipa por trás desta obra de arte é também a equipa por
trás de The Unfinished Swan, outro jogo de qualidade extrema que recomendo. Há uma conexão
entre estes dois jogos, embora não existam, definitivamente, no mesmo universo.
Esta ligação é feita de forma inteligente, tal que, mesmo sendo dois jogos totalmente
diferentes, sinta-se que encaixa tão bem na casa Finch.
Três horas. No máximo. E terão vivido uma das melhores
histórias algumas contadas por jogos.
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