O Homem que Abraçou o Cão (que por acaso cuspia laberedas)
A fraqueza provém da combinação de duas circunstâncias: a primeira sendo o quanto o jogo insiste que pokémons são mais que amigos, e a segunda o quão pouco dessa amizade é realmente mostrada. Suponho que esta fraqueza venha em parte do custo que seria ter de animar interações pokémon-treinador para cada um dos oitocentos e tal pokémons. Do inicio ao fim do jogo vemos personagens a afirmar, daquela forma que os escritores usam quando querem que se leve o que a personagem diz como verdade absoluta, que pokémons são mais que ferramentas (ler: armas), são amigos. Ora, isso seria uma mensagem muito bonita não fosse o facto de o jogo encorajar atirar pokémons antigos para o pc (ler: lixo) a favor de mais fortes. Juntando que a nossa personagem tem literalmente zero de personalidade, e os nossos pokémons não aparecem se não em batalha, torna-se mesmo muito difícil ao jogador criar uma ligação emotiva aos seus monstros de bolso. Por exemplo, nos jogos passados em Sinnoh, o que acontece é que pegamos no nosso primeiro pokémon porque está numa pokébola a jeito para nos defender de passarinhos. Literalmente a primeira coisa que fazemos com ele é servimo-nos dele enquanto arma. Depois vem o professor dizer "This pokémon seems rather happy", quando tudo o que fizemos foi andar à porrada. Portanto o que temos é o jogo a dizer-nos o quão bons amigos somos sem nós vermos tal coisa. Pokémon está sempre a falar sobre o quão bem o jogador trata seus pokémons, mas tudo o que o jogador vê é batalha (vá, e o ocasional concurso de beleza). O jogador porta-se como o Paul, que para quem não se lembra, era o treinador "mau" em Diamond/Pearl. Quando derrotei a pokéliga de Ultra Moon, o jogo mostrou-me cheio de orgulho a minha equipa de "amigos". Ora, um deles tinha acabado de conhecer, literalmente a última coisa que fiz antes de defrontar a liga, dois deles tinham passado a vida no pc e só lá estavam para usufruir de xp, e os outros, vá, ainda passava por amigos. E tenho de admitir que Ultra Moon está a fazer um esforço para melhorar. Conhecemos os três starters quando eles nos salvam dum monstro selvagem. Claro que mandamos dois deles passear em favor do terceiro, mas vá, há um pouco de ligação emocional criada. No fim de cada batalha podemos tratar do pokémon que lutou, escovando-lhe o pelo, usando o secador e etcs, o que o cura de qualquer status que tenha contraído na batalha (poison, paralized, etc.). Ora, isto é giro à primeira vez, à quadragésima nem tanto. O bicho que vá pentear os seus próprios macacos, que eu tenho mais que fazer.
Há também um outro fator que contribui para a desconexão afetiva: a total ausência dos nossos pokémons na história, literalmente podíamos estar a vencer cada batalha atirando pedras que ia dar ao mesmo. Os npc's têm mais sorte nesse aspeto. E fica aqui o aviso de pequeno spoiler no exemplo que vou dar. Gladion e o seu pokémon Type:Null têm uma backstory juntos, o desenvolvimento da história influencia a atitude de Gladion face ao Type:Null (mas não o contrário, porque ai a nossa vida se um pokémon tiver personalidade), e a evolução do Gladion enquanto personagem (ou seja, aprender a ter amigos em quem confia e não viver só para ser mais forte) culmina quando este confia Type:Null ao cuidado do jogador (o que é uma ideia estúpida, porque a única coisa que o jogador fez foi derrotá-lo em batalha e ficar ali a olha sempre com o mesmo sorriso estúpido, enquanto que tinha ali o Hau ao lado, um gajo fixe com uma personalidade, que também é forte em batalha e sabe falar, ao contrário de certa pessoa). Resultado: o único pokémon por quem sentia alguma coisa que não fosse indiferença só o era por causa da sua relação com outra personagem, não comigo. Mas eu até compreendo esta ausência. Não podiam ter um pokémon a participar na história se a qualquer momento o jogador pode alterar radicalmente a sua party.
Isto sim, uma party vencedora |
Portanto a solução seria não se poder mudar de pokémon, certo? Isso traz um problema. Eu quero completar a pokédex, eu quero escolher o meu parceiro, eu não quero que o jogo me obrigue a ficar com uma Jinx, eu quero poder ter vantagem de tipo contra dragões, por exemplo. Há um jogo que resolve esta problemática: Digimon World Next Order. Não é o único da franquia Digimon World que funciona assim, mas é o único que joguei. Portanto, como é que Digimon World Next Order resolve este problema? Fazendo uso duma mecânica já bastante estabelecida de Digimon. Ao morrer, um digimon reverte a ovo (termos e condições aplicam-se). Assim sendo, o jogador tem dois parceiros, treina-os, evolui-os e ao fim de algum tempo eles morrem (conveniente só terem uma esperança média de vida de quinze dias(ingame)). O jogador escolhe de entre uma meia dúzia (mais coisa menos coisa) de ovos diferentes, e a cada fase da evolução o digimon evolui para outro, dependendo dos seus stats (as evoluções em digimon, particularmente nos jogos, funcionam em árvore, um digimon pode evoluir para diferentes tipos de digimon). Mas também esta solução tem os seus defeitos. Em primeiro lugar porque se à primeira e segunda morte dói, ao fim de quinhentos ciclos já não. E não parece tanto ao jogador que o seu parceiro está a voltar a uma fase inicial da vida, mas sim que está a trocar o antigo por um novo, desfazendo qualquer ligação emocional existente (De facto, um dos stats do digimon é o nível da sua relação com o treinador, e quando morre este dá reset). Depois é chato ter de fazer o real (de realeza, não realidade) grind para voltar onde estava antes do menino esticar o pernil. Além de que quando se obtém aquele digimon que se quer mesmo, é um bocado triste ter de fazer o esforço para o voltar a ter sempre que morre, porque senão acaba-se com um PlatinumSukamon.
Vamos então ao jogo que, na minha modesta opinião, fez isto melhor. Digimon Story Cyber Sleuth. A sequela, Digimon Story Cyber Sleuth: Hacker's Memory (nome pequeno, hem?) também seria um bom exemplo, mas eu gosto mais do primeiro.
À primeira vista, não há grande diferença entre Cyber Sleuth e um jogo pokémon, excepto um destaque maior duma certa parte da anatomia feminina em Digimon. Há uma party, há o pc, e os digimon do jogador nem aparecem na história (fora um momento muito importante no fim do jogo, falo vagamente sobre isso mais à frente). Mas existem muitas pequenas coisas que compõem a coisa maior.
Em primeiro lugar, a maneira como os Digimons são apresentados. Antes de vermos um único, é-nos dito que digimons são programas de computador muito úteis para hackear coisas (ou seja, uma ferramenta). Ora, o jogador, ao ver um digimon a fugir doutro mais forte vai atrás dele para o tentar ajudar, espantando quem o acompanha. Afinal, quem é que vai à porrada por um martelo que nem é seu? Isto ajuda bastante a vender a ligação do jogador aos digimons, visto o jogador ser o único (ao contrário do que acontece em pokémon) a considerar os seus monstros gente. À medida que a história vai desenvolvendo, o jogador e npc's amigos vão descobrindo o que são digimons, e a sua relação com eles vai evoluindo. E quanto mais a relação npc-digimon evolui, também o jogador se sente mais próximo dos digimons dos seus amigos, e por consequência, dos seus.
Depois há o pc. Em vez de meter os pokémon no congelador, os digimons vão para uma quinta onde recebem xp. Aí acontecem três coisas. A primeira é que devido ao sistema evolutivo de Digimon, em que um digimon evolui para vários dependendo dos stas, e vários digimons poderem evoluir para o mesmo digimon, estamos constantemente a prestar atenção a tudo o que está no pc, a ver quando conseguimos evoluir um deles para desbloquear aquele lucemon que requer stats mais altos que os do menino Jesus. Além disso, os digimons na quinta podem desempenhar várias tarefas, como: Treinar, desbloquear missões secundárias, e criar consumíveis. Por último, digimons na quinta vão enviando regularmente mensagens ao jogador, perguntando coisas desde a sobremesa preferida ao número de distritos no Japão. Também pedem conselhos, desabafam e tudo o mais. Isto faz maravilhas convencendo o jogador que realmente é amigo daqueles bichinhos fofinhos equipados com armas termonucleares. Não é um sistema perfeito. As perguntas tornam-se repetitivas muito rapidamente, há alguns erros de tradução e o jogador não perde nada se ignorar as mensagens todas. Mas que ajuda, ajuda.
O final (agridoce como é costume de digimon) ao mesmo tempo ajuda a convencer o jogador da relação, ao mesmo tempo que se apoia nela, e funciona muito melhor que o Hall of Fame dos
Resumidamente, gostava que os jogos pokémon e parecidos representassem melhor a suposta relação que existe entre a criatura e o jogador. Digimon Cyber Sleuth é, na minha opinião, admitidamente nada livre de preconceito, o melhor nisto, embora não seja nem de longe perfeito.
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