Talvez Wien... talvez...
Não era muito tarde ainda,
talvez nove e meia, talvez onze da noite. O lugar era o Largo dos Museus, em
Viena de Áustria. Bem, o nome do local a que me refiro é, na realidade, Museumsquartier, cuja tradução à letra
é: Bairro dos Museus. De qualquer das formas, eu chamo, e vou continuar a
chamar, este local de Largo dos Museus. Este largo é magnífico. É um espaço
aberto enorme, rodeado de museus (aposto que não estavas à espera desta), em
que o branco salta à vista, realçando a pureza e pacificidade do local. Ao
longo do espaço encontram-se vários assentos com uma forma típica, creio eu,
onde é possível estar sentado ou deitado.
Eu encontrava-me num desses
assentos, deitado, sozinho, evadido da minha rotina e da minha realidade. Estava
a ouvir música que tinha no telemóvel sem fones, porque podia dar-me a esse
luxo, visto que não é possível incomodar ninguém se não houver ninguém para
incomodar. Felizmente era verão, logo estava vestido com umas calças-calção
cinzentas (no “modo calção”), uma t-shirt preta da Aperture Laboratories e chinelos. Eu sei, eu sei, há pessoas que
acham foleiro andar de chinelos, mas, para mim, é estranhamente libertador.
Enfim, reuniam-se todas as condições ideais para, digamos, eu ser eu. Só mais
uma coisa: ao pé de mim tinha o meu caderno, a minha lapiseira, uma borracha e
a minha mochila (onde trouxe os objetos anteriormente referidos, apesar de
agora só conter a parte das calças-calção que permitem transformar os calções
em calças e uma sweatshirt para o caso
de ter frio). O meu caderno estava aberto numa página que tinha escrito o
seguinte: “Sou o canto escuro da sala. Imóvel, só, observador de dois mundos. O
real e o meu próprio. Gostava de poder observar um terceiro mundo, o teu.
Apenas posso observar-te no mundo real e imaginar o teu mundo no meu.”. Tinha
escrito este parágrafo há uns anos, mas nunca tinha conseguido completar o
texto. O caderno estava aberto na esperança de me surgir alguma ideia boa o
suficiente para o completar. Se calhar este texto é como a vida: uma arte
inacabada.
Porquê Viena? Porquê o Largo
dos Museus? Bem, Viena e, mais concretamente, o Largo dos Museus é um dos meus
quatro lugares reais de evasão. Os outros três são: Vila Nova de Milfontes,
Cuba no Alentejo e a cidade do Porto. Claro que há muitos outros lugares
espetaculares, mas estes foram aqueles com os quais desenvolvi uma “relação”
especial, pessoal. Porque não escolhi um dos outros três? Simplesmente por
Viena ser, de entre os quatro, o meu lugar favorito.
Viena não mudou nada desde a
última vez que cá estivera. A beleza da cidade permanece igual. A simpatia das
pessoas permanece igual. O resto permanece indescritivelmente igual. Se
Portugal desaparecesse do mapa, gostava de viver em Viena. Não conheço um sítio
como este.
Com o passar do tempo
consegui idealizar um lugar de evasão para o qual “vou” quando não posso
evadir-me fisicamente, sendo, por isso, imaginário. Este é um local dominado
pela noite, não uma noite triste e melancólica, mas sim uma agradável noite
estrelada de lua cheia. Este local onde a luz do sol não brilha é um extenso
campo verde rodeado de montanhas altas, também elas cobertas de verde, onde se
pode sentir uma leve brisa.
Voltando ao Largo dos
Museus, lá estava eu a ouvir a minha música quando “La Vie en Rose” começa a
tocar no meu telemóvel. Não uma versão qualquer, a versão que tocava era a de
Cristin Milioti da série “How I Met Your Mother” (“Foi Assim Que Aconteceu”, em
português). Contudo, algo estava diferente… No momento em que oiço “Hold me
close and hold me fast” reparo que duas vozes cantam e, que eu saiba, Cristin
Milioti possui uma só voz (à semelhança de toda a gente). Limito-me a fechar os
olhos e a tentar localizar esta segunda voz. Após a ter localizado, em cerca de
dois segundos, sento-me, virando-me para o local de origem desta voz que se
aproxima, à medida que a música progride, ainda de olhos fechados. E assim
permaneço… a ouvir aquela belíssima voz cantar esta magnífica canção:
“Hold me close and hold me fast
This magic spell you cast
This is la vie en rose
When you kiss me, heaven
sighs
And though I close my eyes
I see la vie en rose
When you press me to your
heart
I’m in a world apart
A world where roses bloom
And when you speak,
Angels sing from above
Everyday words seem to turn
into love song
Give your heart and soul to
me
And life will always be
La vie en rose”
Antes da música acabar, a
proprietária da voz agarra a minha cabeça, move-a na direção dos seus lábios e,
quando o último acorde toca, beija-me a testa. A música muda, eu ignoro, pouco
importa agora. Abro os olhos, é Ela que se encontra à minha frente. Gradualmente,
e sem lhe tirar a vista de cima, senta-se ao meu lado esquerdo e começa a fazer
festas nas minhas costas com a sua suave mão direita. As minhas mãos
encontravam-se cada uma em cima do respetivo joelho. Os meus olhos observavam o
Seu rosto que fitava o céu a um ângulo de 30 graus.
A Sua figura é angelical. Nem
a boca nem os lábios são muito grandes, mas enquadram-se muito bem no resto do
rosto. O nariz é pequenino e rosado, o que, juntamente com as bochechas, também
elas rosadas, e alguma palidez tornam a sua face mais fofinha e querida. O Seu
olhar é profundo e muito bonito por causa dos seus olhos castanho-claros que
permitem distinguir ligeiramente a íris (que ocupa grande parte do olho) da
pupila. Sinceramente, não sei descrever sobrancelhas nem pestanas, se bem que
não é relevante. Já agora, que queres que diga sobre a testa Dela? Não há muito
que se lhe diga… sei lá… é uma testa “normal”, olha a porra! Os cabelos sim,
são incríveis, naturais, de um castanho ligeiramente mais escuro do que o da
íris dos olhos, ligeiramente ondulados, não muito curtos nem muito longos para
uma mulher, simplesmente perfeitos.
Após trinta segundos a observar
a Sua silhueta, também eu começo a olhar para o céu. Afinal de contas, como
Stephen Hawking uma vez disse: “Look up at the stars and not down at your feet.
Try to make sense of what you see, and wonder about what makes the universe
exist. Be curious.”. Sei perfeitamente o que faz o meu Universo existir. O
problema é fazer sentido. Mas não é por isso que olhamos para o céu? Na
esperança de encontrar respostas que claramente não estão coladas aos nossos
pés como pastilha elástica? Enfim…
Sinto a cabeça Dela a girar
na minha direção, permanecendo assim durante cinco segundos. Passado esse tempo,
beija-me na face esquerda, sem dizer uma única palavra. Volta a olhar para mim.
É aí que o meu corpo se encosta ao Dela, e a minha cabeça ao Seu ombro. Uma
primeira lágrima salta do meu olho esquerdo e percorre a minha face, abrindo
caminho para as que se seguirão. Não foi uma lágrima de tristeza pura, talvez
de saudade, talvez de arrependimento, talvez de outra coisa qualquer… E assim
ficamos uns minutos, os dois, sozinhos, encostados (ou melhor, eu encostado a
Ela), num assento do Largo dos Museus, a ouvir música que ia passando no meu telemóvel.
Que música(s)? Talvez “Monster” dos Starset, talvez “Sign” dos Flow, talvez
“What is Love” do Haddaway, talvez “Fix You” dos Coldplay, talvez “Tiny Glowing
Screens – Part 2” do Watsky, talvez a cover de “Sadness and Sorrow” do Tyfon,
talvez “Ezio’s Family” do jogo Assassin’s Creed, talvez “Next To Me” dos
Imagine Dragons, talvez “The Night We Met” dos Lord Huron, talvez “Stand By Me”
do Ben E. King, talvez “Mano a Mano” do Salvador Sobral, talvez “Now” do
Vexento, talvez “Angels” dos The xx, talvez “Youth” dos Daughter, talvez a
improvisação do Sp4zie de “River Flows In You”, talvez “Potato Cream” também do
Sp4zie, ou talvez outra música qualquer, são infinitas as possibilidades…
talvez…
- Que estás aqui a fazer?
Fez-se silêncio, outra vez
(fora a música que tocava). Porquê? Porque ambos esperávamos pelas respostas,
quer pela nossa própria, quer pela do outro.
- Perdi-me… eu não sei… Deu-me na
cabeça para vir até aqui. Em tempos foi esta a cidade onde quis estudar, na
Universidade onde Schrödinger estudou. Claro que esse plano tinha muitas
falhas. Financeiras e de comunicação, essencialmente. Afinal de contas, não sou
rico nem poliglota: o meu inglês não é suficientemente bom para fazer um curso
superior, o meu espanhol não é grande coisa nem útil na Áustria, e só sei dizer
“Obrigado” em alemão (“Danke”) e em grego (“Ευχαριστώ”). Para além disso, o meu
conhecimento é muito limitado. Na altura pensei em vir para cá para recomeçar.
Mas mesmo sabendo que esse plano não ia resultar, eu sabia que iria voltar. E
há uns dias, pareceu-me uma boa oportunidade para o fazer. Não com o objetivo
de recomeçar, mas talvez o de me apagar por uns tempos, o de parar, o de
arranjar paz.
- E conseguiste o que querias?
- O que é que achas?! Claro que
não! Nunca o consegui! É impossível consegui-lo! E eu adoro Viena, sou mesmo
apaixonado pela cidade. Só há outra coisa pela qual sou mesmo apaixonado: Tu. É
tão estúpido, tão doentio!
Pausa para chichi. Brincando… pausa
para lágrimas.
- Muita coisa aconteceu que me veio
a destruir desde a última vez que te vi. Em primeiro lugar, a minha gata adoeceu
e acabou por morrer. O que vou dizer é tão ingénuo, mas, no meu subconsciente,
sempre pensei que a minha vida ia ser acompanhada por aquela gata tão elegante
e tão meiga, mesmo que eu saiba que os gatos vivem muito menos anos que os
humanos. Isto ainda no secundário, vê lá. Um ano depois faleceu a minha avó, o
meu talismã secreto da sorte. Claro que a minha avó foi muito mais do que isso.
Foi alguém que sempre cuidou de mim, que sempre se preocupou comigo, que me
ensinou muita coisa antes de entrar na escola, aliás, que sempre me transmitiu
aquilo que sabia, que sempre me tratou com carinho e que me iniciou no chá, a
minha droga. Foi uma pessoa por quem tive, e ainda tenho, muito carinho.
Entretanto, deixei de falar com o meu pai, mas, sinceramente, não quero falar
nisso.
Pausa, outra vez. Parei a música do
telemóvel.
- Lembro-me que andavas indeciso
quanto ao curso que ias seguir. Como é que acabaste por resolver a situação?
- Um dó-li-tá. E foi a melhor coisa
que alguma vez fiz.
- A sério?
- Não, génio! Fui parar a um curso
qualquer que pouco me diz.
- Então porque razão não foste para
um curso que te dissesse alguma coisa?
- Simplesmente, por nenhum me dizer
nada. Mas continuo no curso. Já agora, ouvi dizer que te andas a safar
lindamente no teu e ainda bem. Fico muito contente por ti.
- Obrigada!
- Ao menos as coisas correm bem a
um de nós.
- Calma lá! Não podes pensar assim.
E aquela história das regras? Regra número 1: …
- Há sempre alguém pior do que tu;
Regra número 2: “(…) And if you’re in love, then you are the lucky one (…)”;
Etc… Até podem ser verdade, e são, mas neste momento não importa, percebes? Nem
quem está pior, nem quem está melhor e, sinceramente, não me sinto sortudo
nenhum.
- Porque dizes isso?
- PORQUE SOU UM NIILISTA DE MERDA!
NADA IMPORTA! NADA FAZ SENTIDO!
Irrito-me, levanto-me, chuto o ar
duas ou três vezes, volto a sentar-me, de lágrimas a correr. Ela agarra-me o
braço.
Pausa de curta a média duração.
Depois disso, Ela levanta-Se, ainda agarrada ao meu braço, logo sou forçado a
levantar-me também.
- Anda dar uma volta, mostra-me um
bocado da cidade.
E assim o faço, porém liberto o
braço esquerdo, arrumo na mochila tudo o que tenho, coloco a mochila às costas
e devolvo-Lhe o braço como se fosse propriedade Dela. Posto isto, saímos do Largo
dos Museus em direção a Schottentor,
onde era a Universidade de Viena. O caminho demorou cerca de vinte e cinco
minutos e passámos por locais icónicos da cidade como Maria-Theresien-Platz (ao pé de Museumsquartier),
a Rathaus (a Câmara Municipal) e o
Café Bierbeisl Einstein (não sei
porquê “Bierbeisl”, mas, sim, “Einstein” é por causa do cientista).
A viagem foi silenciosa, exceto
quando eu Lhe falava sobre o pouco que sabia da cidade ou quando Ela calmamente
cantarolava. Naquele momento já nada importava, nem o porquê Dela estar ali. Para
mim, a companhia Dela era reconfortante, era tudo.
Chegados à Universidade, parámos
por um instante, observámos o que nos rodeia e, por fim, olhámos um para o
outro. Desta vez é Ela quem se liberta do meu braço, penso eu por estar cansada
de estar presa a mim, mas o que se segue é um forte abraço silencioso, ao qual
retribuo. É então que nos sentamos nas escadas da entrada da Universidade a um
canto. Fecho os olhos, estava calmo. Não foi preciso muito, só foi preciso Ela
estar ali. Às vezes, isso é tudo.
Última pausa. Depois disso, Ela
disse:
- Gosto muito de ti.
Abro os olhos, não sei bem porquê,
ia dizer-Lhe que também gosto muito Dela. Mas quando começo a pronunciar a
palavra “também”, Ela tinha desaparecido. Ainda olho em redor para ver se a
encontro, mas sem sucesso. Levanto-me e começo a vaguear por Viena, enquanto
ouvia música, agora com fones, a pensar: talvez Ela tenha aproveitado o facto
de estar com os olhos fechados para ir embora, talvez tenha feito o passeio sem
a sua companhia, talvez tenha estado sempre sozinho, talvez esteja sozinho, talvez
tenha imaginado isto tudo, talvez esteja numa ilusão, talvez não… talvez…
Revisão de Renata Albuquerque (Muito Obrigado!)
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